Este ano vai ser
diferente. Princípio de um novo ano todo mundo se diz ‘este ano vai ser
diferente’. Minha amiga não fugiu a regra. Seus objetivos de estudos foram
alcançados. E o novo ano realmente é um ilustre desconhecido. Não há coisas
pela metade a finalizar, a não ser algumas dívidas. Fora trabalhar, ela não
tinha mais outras atividades. Então: reeducação alimentar? Hidroginástica?
Atualizar o inglês? Viver outro grande amor? Ela não sabe. Hoje ela pode tudo.
Está animada. Esvaziou armários. Rasgou milhares de papéis e textos antigos. Doou
livros. Organizou arquivos no computador. Apagou centenas de e-mails. Novo ano
mesmo! Uma renovação real e colorida. Energias outras pelo ar. Por fim incenso
na casa. Minha amiga respira seu imaginário e pensa em apostas. Quer apostar em
si, num outro ‘si’, só para variar. Mas ela ainda não experimentou o espelho.
Está se preparando, mas nada ainda. Espelho inverte demais! Espelho é verdade
demais! Ele está coberto... Espelho é a caixa de Pandora do feminino. Nele
estão tachados: vulnerabilidade, afetividade, negações, temores e
inexperiências. Minha amiga se incomoda com isso. Amigos são muitos, eventos
semanais, atividades diárias, mas a emoção ainda não é recordação. Com um
aerosol perfuma a casa. Sente que exagerou, mas é a vida. Os dias passam. Surgem
os primeiros convites e propostas de trabalho. O mundo da minha amiga se
ampliou pelos vazios. Ela pode mais. Não há receitas milagrosas. Não se pode
acreditar em sacrifícios irreais. E há momentos de franqueza. Minha amiga vai
juntar novos papéis inúteis, vai comprar novas roupas que não usará, vai sair
da dieta sem culpa etc. E aí nova decisão: o
meio-termo. Ações que ficam entre o ideal e o impossível de proporcionar
prazer e a alegria são o meio-termo.
Depois de tudo limpo, minha amiga lembra de Roberto da Matta e vai à rua. A
muito tempo não andava pelo bairro e precisava se sentir parte daquele mundo de
novo. ‘Nossa, como o supermercado está amplo!’. Padaria, jornaleiro, locadora,
dentista, farmácia, papelaria, pastelaria, como tudo mudou! E as lembranças da
infância são fortes. Ao se propor mudar, é a determinação que alonga o traçado
de vida de uma pessoa. Há medicamentos para muitas coisas hoje, mas nada supera
o poder da vontade. Minha amiga está (re)visitando seu interior, rompendo com a
mesmice dos dias e indo ao encontro do que possa sobressair na pele, no olho e
na boca. ‘Sua viçosidade será conquistada pelo desejo’ – acredita ela -, aliado
a crença numa expressão popularizada ‘só por hoje!’. No mundo do meio-termo, cada ‘sim’ é sucesso. Na
virada do ano, minha amiga superou-se em gradações. Minha amiga está no ‘meio-termo’, em equilíbrio, sem
agonias existenciais. E o Espelho? Ainda coberto, mas incomodando. Sua limpeza
regular é feita por outra pessoa. Depois de horas de dispensa, o espelho cresceu.
Domingo de madrugada. Insone, minha amiga atravessa sala e quarto. Busca a
varanda, busca ar. Na passagem, tropeça e cai por cima do espelho. Queda e
vertigem. Não há apoio. Tudo vai ao chão. Minha amiga e espelho espatifados. Um
caco alcança seu braço. Dói, dói demais. Corajosa, arranca o caco e grita
intensamente. De dentro do caco, um olho vivo e desconhecido lhe olha. Na
garganta, presa, uma pergunta: QUEM É ESSA?
Claudia
Nunes 2009
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