quinta-feira, 18 de junho de 2015

MEIO TERMO

Este ano vai ser diferente. Princípio de um novo ano todo mundo se diz ‘este ano vai ser diferente’. Minha amiga não fugiu a regra. Seus objetivos de estudos foram alcançados. E o novo ano realmente é um ilustre desconhecido. Não há coisas pela metade a finalizar, a não ser algumas dívidas. Fora trabalhar, ela não tinha mais outras atividades. Então: reeducação alimentar? Hidroginástica? Atualizar o inglês? Viver outro grande amor? Ela não sabe. Hoje ela pode tudo. Está animada. Esvaziou armários. Rasgou milhares de papéis e textos antigos. Doou livros. Organizou arquivos no computador. Apagou centenas de e-mails. Novo ano mesmo! Uma renovação real e colorida. Energias outras pelo ar. Por fim incenso na casa. Minha amiga respira seu imaginário e pensa em apostas. Quer apostar em si, num outro ‘si’, só para variar. Mas ela ainda não experimentou o espelho. Está se preparando, mas nada ainda. Espelho inverte demais! Espelho é verdade demais! Ele está coberto... Espelho é a caixa de Pandora do feminino. Nele estão tachados: vulnerabilidade, afetividade, negações, temores e inexperiências. Minha amiga se incomoda com isso. Amigos são muitos, eventos semanais, atividades diárias, mas a emoção ainda não é recordação. Com um aerosol perfuma a casa. Sente que exagerou, mas é a vida. Os dias passam. Surgem os primeiros convites e propostas de trabalho. O mundo da minha amiga se ampliou pelos vazios. Ela pode mais. Não há receitas milagrosas. Não se pode acreditar em sacrifícios irreais. E há momentos de franqueza. Minha amiga vai juntar novos papéis inúteis, vai comprar novas roupas que não usará, vai sair da dieta sem culpa etc. E aí nova decisão: o meio-termo. Ações que ficam entre o ideal e o impossível de proporcionar prazer e a alegria são o meio-termo. Depois de tudo limpo, minha amiga lembra de Roberto da Matta e vai à rua. A muito tempo não andava pelo bairro e precisava se sentir parte daquele mundo de novo. ‘Nossa, como o supermercado está amplo!’. Padaria, jornaleiro, locadora, dentista, farmácia, papelaria, pastelaria, como tudo mudou! E as lembranças da infância são fortes. Ao se propor mudar, é a determinação que alonga o traçado de vida de uma pessoa. Há medicamentos para muitas coisas hoje, mas nada supera o poder da vontade. Minha amiga está (re)visitando seu interior, rompendo com a mesmice dos dias e indo ao encontro do que possa sobressair na pele, no olho e na boca. ‘Sua viçosidade será conquistada pelo desejo’ – acredita ela -, aliado a crença numa expressão popularizada ‘só por hoje!’. No mundo do meio-termo, cada ‘sim’ é sucesso. Na virada do ano, minha amiga superou-se em gradações. Minha amiga está no ‘meio-termo’, em equilíbrio, sem agonias existenciais. E o Espelho? Ainda coberto, mas incomodando. Sua limpeza regular é feita por outra pessoa. Depois de horas de dispensa, o espelho cresceu. Domingo de madrugada. Insone, minha amiga atravessa sala e quarto. Busca a varanda, busca ar. Na passagem, tropeça e cai por cima do espelho. Queda e vertigem. Não há apoio. Tudo vai ao chão. Minha amiga e espelho espatifados. Um caco alcança seu braço. Dói, dói demais. Corajosa, arranca o caco e grita intensamente. De dentro do caco, um olho vivo e desconhecido lhe olha. Na garganta, presa, uma pergunta: QUEM É ESSA?

Claudia Nunes 2009


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