quarta-feira, 17 de junho de 2015

UMA BORBOLETA: uma história de avó

Mesmo diante das melhores tecnologias, existem algumas tradições orais que persistem em nossas vidas. Hoje quero falar de uma tradição “de vida”. A lembrança me veio enquanto lia uma crônica chamada “Obrigada por insistir”[1]. Essa expressão é uma grande verdade.  Todos precisamos ter para quem dizer isso. Todos precisamos ter a coragem de fazer isso. “Insistir” faz parte daqueles que acreditam em seus sentimentos e “partem pra dentro”. “Obrigada” faz parte daqueles que, após momentos de dúvida, reencontram a confiança e “partem pro abraço”. “Obrigada por insistir” é a expressão da fragilidade que se quer ou sabe acolhida. “Obrigada por insistir” é o resultado do escutar, da disponibilidade, do (re) envolvimento. “Obrigada por insistir” me lembra minha avó. “Obrigada por insistir” é minha avó e a borboleta. Estou aqui, no meu quarto, depois do referendo. Estou cansada, doída, por dentro e por fora. As coisas estão cansativas. Eu estou chata. Olho ao redor. O não-movimento dos objetos me incomoda. Ando pela casa. Ligo várias TVs, pois tento me sentir confortável em vários cômodos. Uff! Tudo muito sem graça. Leio a crônica sem dar muita atenção ao conteúdo e o inesperado: uma borboleta atravessa quarto e sala, e se “planta” na parede acima de mim. Fiquei com medo, ela era enorme, mas depois fiquei muito feliz: em minha casa, borboletas são sagradas... em minha casa, borboletas são visitas de entes queridos... em minha casa, borboletas são ensinamentos. Linda, a borboleta. Mesmo pousada, não pára de bater as asas. Sinto o seu vento no nariz. Não há nada em minha cabeça. Sigo apenas o movimento das asas. Segundos depois, o ar fica cheiroso, limpo, imensamente respirável. Deito no chão, de frente para ela e a miro. Lindo o seu movimento. Minha pulsação está em meus ouvidos. O ir e vir das asas é delicado, impulsivo, certo, casto. Fecho os olhos e penso em minha avó. Avós não gostam de palavras ruins: em minha casa nunca se diz desgraçada, infeliz ou azar. Avós não gostam de sinais ruins: em minha casa não se faz sinal da cruz em vão ou se coloca o dedo polegar para baixo à moda romana. Avós gostam de histórias boas: “quando você estiver triste, vovó vai vir lhe visitar em forma de borboleta... olhe e lembre-se...” Há uma borboleta frenética em minha parede. Não é coincidência!! Ela insiste em gostar de mim. De olhos fechados, revejo os objetivos da minha vida... e eles são pesados. É preciso encontrar forças para dar passos sem vacilar. Há uma bruma de desentendimentos e isso me transforma em alvo fácil até para o “fogo amigo”. Quero alguma iniciativa! Quero uma mão! Não posso chamar convidados para isso. Sonho com mosteiros, castelos, mas procuro campos abertos, pradarias. Pernoito num entardecer a muito tempo. Se existe mentor espiritual, essa é minha avó. Seus olhos me alcançam e são bons. Seu sorriso é largo e excitante. Suas mãos são quentes e me pegam bravamente. “Atenção”, dizem! “Deseje”, pedem! “Conquiste”, exigem! “Nós lhe demos essa capacidade”, gritam! Meu sangue engrossa e vive me mim. Dói! Abro os olhos e a borboleta está paradinha e plena em suas cores. Cada detalhe imprime cor às minhas expectativas. Ela é a figura que faltava nos meus impulsos atuais. Ser inteligente é fazer festa com o saber e eu preciso ser sábia. A borboleta é a bucha que acende e infla meus porões cheios de experiências que já não mais utilizo. Ela é tão vigorosa que tudo se desmancha no ar. Estou doando meus valores e conceitos para o mundo. Quero minha avó. Quero a presença do que for confortável para confiar em qualquer forma de investimento no breu dos riscos. Ficarei com marcas das vivências, mas atuarei dentro de padrões outros e melhores. Lagarta e borboleta nunca se excluem. Não desisto, não descarto, não abandono, não uso, não esqueço, apenas, insisto sempre. Nunca abandonarei minha borboleta, ou minha avó, ou minha insistência porque são minhas fundações e quero continuar aprendendo.
“Obrigada por insistirem” em gostar de mim.

Claudia Nunes 2005




[1] A crônica é de Martha Medeiros e foi publicada na Revista do jornal O Globo, de domingo, dia 23/10/05.

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