Há alguns dias,
eu estava sozinha em casa e fiquei zapeando pela “TV fechada”, quando descobri,
dentro da programação de certo canal, um show da CHER e, segundo o anúncio,
este seria o último da carreira dessa excelente artista. O último? Vocês sabem
o que é isso? Não há pessoa mais híbrida do que essa mulher. Eu tinha que ver
isso! Aguardei... Depois de segundos de show, meu olhar foi capturado e
permaneci vidrada naquela figura que atravessou os meus sentidos profundamente.
Não havia mais eu nem ela, havia todas as possibilidades de alguém ser o que
quisesse. As trocas de figurinos diziam às mentes de todos (platéia e eu) que
nada, nem ninguém, era impossível. Capturada e vidrada, fui também sugada em
toda a minha identidade. Identidade? O que é isso? Uma criação teórica de todos
os meus anos de vida para bem me defender e útil para a liberdade de atacar. O
mais certo é que entrei em crise! Desequilibrei-me! E só não caí porque já
assistia àquele espetáculo no chão da minha sala. Cruzes! Enquanto estive
hipnotizada por aquela figura alienígena, sensual, extravagante e voraz, fui
vasculhada em meus esconderijos, identifiquei-me com o que via e desejei, e
muito, ser a CHER. De repente, me senti moradora eterna de um casulo quente e
confortável, mas que, na verdade, era a prisão da borboleta. Penachos,
lantejoulas, decotes, ufa! O que era aquilo? Era um ser vivo realmente vivo e
pleno! Entrei de cabeça nesse tsunami pós-moderno e percebi que, mesmo
Nietzsche estava errado: descartei-me do demasiadamente humano. Nascemos e disputamos
quinhões de certezas, desconsiderando (com certeza!) os insólitos, os absurdos,
as surpresas e os riscos. Primeiro, o espaço físico; depois a “fábula” do
espaço sentimental: essa é a ordem. Enquanto o show me tomava por completo,
percebia que a música, com rimas óbvias relacionadas a amores, suas perdas e
danos, pouco me desligava daquela figura. Perdi a mim em algum lugar desse
momento, aceitei a tensão que me estampava a personalidade e aumentei minha
pressão cerebral. Cadê eu? Sinceramente? Não sei, não quero saber e, juro,
tenho completa raiva de quem sabe! Comecei também a olhar ao meu redor. Estava
na sala de casa e a mobília era de tempos imemoriais. Peguei os enfeites da
mesinha de centro e vi. Vi a mesinha de centro da minha casa finalmente!
Quantos anos eu não via a minha mesinha de centro! Aquela parafernália toda em
cima dela a desaparecia. Tal qual eu... Eu tenho uma parafernália que me
condena! Nessa viagem ao meu centro, vou enfrentando entulhos, barragens,
deslizes antigos. Nem tudo é superável, lógico! Eu tento evitar certos
confrontos porque a exigência de mudança é muito radical. Até para essas
mudanças a faixa etária pode ser negativa. Mesmo assim, o impulso de “ver para
crer” foi minha resposta cerebral a tanta sedução... aí, o corpo foi.. Nesses
casos não há um agendamento prévio de um compromisso a ser seguido. Há uma onda
que me (nos) alcança e o faz comunicando que o percurso é de quase afogamento,
tal o peso do seu volume sobre mim (nós). Não há um segundo momento para nada.
Pensar, aceitar, negar são ações sem tempo. Estamos. Estou. A cada troca de
roupa encontro um desejo e vou criando vontades. Sigo Os Titãs “cada um sabe a
ferida e a dor que vai ao coração”. Essa vaga chamada CHER foi o acaso (ocaso?)
que me dominou e imprimiu um desejo de morte. Fiquei parceira de Tanatos! Eu
queria ser outra pessoa. Eu quero ser outra pessoa! Minhas complexidades me
complicam. Sem uma prancha, solta, muitas imagens me cercaram. Não eram imagens
da infância e/ou adolescência. Não eram imagens “lembráveis” sob quaisquer
estímulos. Eram não-imagens. Eram cenas de muitos não-eus. Outras histórias.
Nós não escolhemos e descartamos. Nós escolhemos e guardamos. Que perversidade!
Temos sempre só as escolhas. Meu coração estava acelerado. Eu queria voltar.
Queria minha confortável identidade. Meu casulo!! Cadê? Tumulto... E CHER
exigia mais: além da luta, ela exigia envolvimento, mas eu tinha alguns
alívios: os comerciais. Durante 60s, eu tentava resgatar qualquer coisa que me
lembrasse: lia jornal, analisava os projetos, comia jujuba, tomava suco de caju,
o que fosse... Porém tudo só durava o tempo da vontade. A revolução não podia
parar. A crise represava o sentido da fuga. Acordos devem ser cumpridos. Minha
ruptura foi minha oportunidade. O show “bombava” e eu não perdia nada. Cores,
gestos, fantasias, perucas, umbigos, sorrisos, tudo me tragava em espiral alma
adentro. Vez por outra, outro pensamento: “puxa vida, há quanto tempo não me
“condentro” desse jeito!.” CHER não é andrógena, CHER é alienígena. Seu corpo,
movimentos e voz, estabelecem-se na categoria de necessidades especiais. Sinto-a como um martelo que, com força,
deforma na intenção de um novo formar.
Durante uma hora, aquela figura exótica, com “6.0 e uns trocados” de
idade, irrompe, transversa e “inversa” minha criação. Sinto-me urgente. Parece
que estou em processo de desfibrilização. Durante uma hora, meu corpo se
movimenta e se debate. Estou a ponto de fazer novas escolhas (discernimento).
Diante da inexorabilidade de tudo que submergiu de mim, não há argumentos
sólidos. Ou se ousa, ou desliga-se a TV... Estou num processo de adversidade?
Nunca! Quero a criatividade de todos os meus mins... Nem penso em domínio,
quero a vertigem agora! Sem hesitação! Se tenho medo? Pavor! Mas faz-se o que
lhe dá medo e se ganha coragem depois. Sempre depois. Saber o vivido? só
depois... Nunca antes! As letrinhas do fim do show sobem, mas CHER permanece.
Agora as cenas são dos bastidores. Decomposição do cenário. Ela pega um carro e
vai embora. Meu corpo todo treme porque minha alma continua jogando “pinball”.
Lembro da palavra enrustido. Todos somos
enrustidos. Por
que? Conveniência? Estabilidade?
Indiferença? Compaixão? Não sei... Eu “queria ter a sorte de um amor
tranqüilo”, mas “amor vem dos outros e... demora”.
Claudia Nunes 2005
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