AMIGOS
ACABAM?
Amigo
que é amigo quando quer estar presente /faz-se quase transparente sem deixar-se
perceber /Amigo é pra ficar, se chegar, se achegar, /se abraçar, se beijar, se
louvar, bendizer /Amigo a gente acolhe, recolhe e agasalha /e oferece lugar pra
dormir e comer /Amigo que é amigo não puxa tapete /oferece pra gente o melhor
que tem e o que nem tem /quando não tem, finge que tem, /faz o que pode e o seu
coração reparte que nem pão. (Zélia Duncan)
Tempos livres. Tempos de pensamentos
soltos, mas misturados. É madrugada. E me pergunto: amigos acabam? Sim, acabam.
E é de uma hora para outra. É uma presença que se perde por muitas razões
inúteis. Estou dirigindo e em cada luz surge um amigo. Tempos de infância, de
escola, de trabalho, de beijos. Muitos passaram pela minha pele e sentidos com
enorme importância e hoje são vagas lembranças que me fazem suspirar de prazer
e sorrir sozinha num carro a 100km/h. Nada eram sensações mentirosas porque eu
prezo minha integridade, mas nem sei por onde andam. As luzes da cidade se
acabam, surgem montanhas e prado, e o carro está em espiral: estou na serra.
Amigos mais práticos dirão ‘se amor acaba, por que não os amigos?’ Porque
aprendi que amigo ‘é pra sempre’! Minhas lembranças são de pura pulsação e alegria,
mas o toque é impossível. Por quê? Onde foi todo mundo? No alto da colina, paro
o carro, vou tomar um café. Preciso de café. Não quero minha memória fraca,
quero-a em hiperatividade porque estou em convulsão. Não falo de amigos mortos,
isto independe de mim. Falo de pessoas que ocupam meus braços, pernas, umbigo,
nariz, boca, cérebro, tudo em mim. Falo de pessoas dentro do meu movimento, das
minhas emoções, dos meus discursos, da minha crítica e/ou das minhas
(in)compreensões. ‘Alguéns’ me chamaram na insônia, num hotel passando mal, num
bar, numa casa; para um grupo, um choro, uma grande algazarra, um cinema, um
aeroporto, um Natal, uma discussão, uma bronca; para escrever, ler, opinar,
trabalhar, mediar, viver, beijar, experimentar, ver, só escutar, um vinho; para
conversar na madrugada, me ensinar, me ajudar dentre outras coisas ao quadrado.
Onde estão estes ‘alguéns’ das minhas experiências, dos meus sustos, das minhas
incertezas, das minhas risadas? Eu não sei... Será que existem outras
dimensões? Será que cada alguém sou toda eu e eu não percebo? Outro café, agora
com leite. Amigos estão desmanchados no ar, mas eu não gosto. Nem quero saber
dessa história de aprender a desgarrar. Não rola! Estou com fome! Dirigir dá
fome! Talvez fome de companhia... Acabar é resultado, mas resultado de quê? Das
perdas? Uma fala, um gesto, um olhar, um silencio, um ruído na voz, um diálogo
desajeitado, algo que alguém disse, tudo é passível de criar ranhuras no afeto,
mas acabar? E o diálogo, a conversa, a franqueza? Nada? Amigo evapora-se no ar
sem fechamento? Não compreendo... Não vou seguir com o carro, de repente as
lembranças me ocuparam de tristeza. Lembranças assim são alegrias póstumas,
como afirma Lya Luft. Oh mulher de verdade! Oh escritora das nossas auroras!
Encontro um quarto e vou me deitar. Os carros fazem barulhos e não me ajudam:
existem buzinas que espetacularizam vários amigos. Tomo um banho e já me vejo
quase chorando. Não consigo me despregar da veracidade da vida: seguimos
caminhos sempre sozinhos. É verdade que todos estão dentro de mim, mas como
disse bem uma amiga angustiada num dia 31 de dezembro: ‘estão dentro de mim
felizes, mas não estão comigo agora’. Não sou nada mais do que o resultado do
meu contato pleno com os amigos, mas estou só num hotel de estrada porque a
memória pesou. E a memória não vai dormir. Os sonhos são mais insatisfeitos.
Mato o superego e mergulho no inconsciente. O que aconteceu? Cenas se misturam,
me assustam, me surpreendem. É uma epifania de sentidos! Nada me conforta. Corpo
revolto na cama. Outra amiga surge nesta confusão gritando: ‘desapegue!
desapegue!’ Como assim? Tantos desejos, tantas apostas, tantas parcerias,
tantas afinidades, tantas verdades, tantos anseios, tantas trocas importantes
junto e agora, ‘desapegue!’? Isto não é uma prática bonita. É descaso, é
deselegância, é falta de elã! Acordo. Sol na cara. Preciso continuar. Pago a
hospedagem e vou ao encontro do carro. Ao sentar, escuto um barulho metálico.
Entre os bancos, caído, um CD chamado ‘Amigo é casa’. Suspiro forte e sigo em
frente pensando: ‘o que me resta é respeitar’.
Claudia Nunes 2009
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