Mesa do café posta. Depois de muitos anos, a variedade de alimentos em
frente a Lício era muito interessante. Ele não tinha se dado conta, mas sua
vida dera uma guinada forte: o dinheiro entrava. A monotonia dos dias correndo
atrás de dinheiro, descanso e felicidade mudara; agora a monotonia era tudo.
Ele não precisava mais nada. Ele não tinha ‘que’ nada. A regra era escolher,
optar e construir o dia como desejasse. Valera à pena? Hoje não era dia de
respostas complicadas. Não tinha tempo para isso. O café fumegava a sua frente,
tipos de frios se ofereciam aos seus sentidos e estômago, e, pelo menos três
tipos de sucos surgiam para ele num grito primitivo de sobrevivência. Que
difícil escolha! Que desperdício poder escolher tanto! Havia música no ar. Música
vinda dos outros apartamentos. Música que ocupava sua varanda e o deixava
‘ligado’, ligado na vida, na vida do outro. Pensar na morte da bezerra era o
princípio da loucura, mas era o melhor a se fazer correndo poucos riscos. Nada
de caminhar para o trabalho, ir à academia, tomar banho ou ver televisão como
máquina de produzir suor. Era preciso comer e respirar. Diante do desjejum,
Lício precisava se esforçar para entender que o movimento dos pulmões não era
banal. O café da manhã continuava gritando e não afetaria só o estômago. A
energia era preciosa e ocupava todo o corpo. Lício estava emocionado, tão
emocionado, que sua pele arrepiava, arrepiava e arrepiava aleatoriamente. Será
isto alegria? Saudade? Autoconfiança? Satisfação? Sem jeito, começa a comer,
mastigar e sentir. Não há nada sem a menor relevância. Ele pensa em meias, em
limpeza, num filme, no beijo, na nova TV e a plenitude vai chegando. Como
levantar e sair deste enlevo? Como perder este tempo e essas emoções tão
suculentas? Além de mastigar, fecha os olhos e seu corpo (parece) ganhar espaço
e dimensão. É um abraço à realidade. Ele arruma a mesa, olha de soslaio ao
redor e vibra com a brisa que brinca com seus cabelos até o próximo orgasmo da
imaginação.
Claudia Nunes
2010
DUAS
IDADES
Hoje eu estava
pensando em relacionamentos. Engraçado né? Todo mundo quer independência, mas
quase todo mundo deseja parcerias de vida... e parcerias de vida inteira! Desde
cedo, há todo um esquema social montado ou pré-moldado para o acontecimento de
determinados eventos de vida. Estou dirigindo pela orla do Flamengo e vejo,
passeando, diversos casais arrulhando como pombos. Interessante é que se você
se aproxima tem a nítida sensação de que ou o amor tem limites, ou não há peles
compromissadas. Os olhares estão turvos e o calor das ações são realizadas com
pouquíssimos encantamentos. Não me interesso mais por questões de gêneros,
acredito no bem estar, mais do que na felicidade. Então, por que as pessoas
aceitam para ficarem juntas apesar de qualquer coisa? Não sei, nada me vem à
memória. A idéia parece ser curtir, ficar, namorar. Ambos de alguma maneira
confiam desconfiando, mas seguem de mãos dadas pelos dias supondo o próximo
prazer. Meses ou anos tornam-se tempos que não refletem estabilidades a ninguém,
mas o ideal é TER alguém. Parei e estacionei numa praça com carrocinhas de
sorvete. Estou com um dilema: o que essas pessoas sentem? Onde apontar a emoção
da paixão? Difícil... Um casal de idosos chama a minha atenção. Ela chora. Ele
olha para o nada. Ela olha para dentro. Ele olha para o outro lado. Ficam ali,
sentados, sem reação, mas abraçados e se amparando. O que será que aconteceu?
Eu precisava saber: o que será que houve? Imaginei: depois de anos, eles
descobriram novidades do corpo e da mente. Nas peles enrugadas e nos cabelos em
neve, todo o esforço para construir uma história. Foram amantes de outras
pessoas e, na ponta da vida, se comunicam, dialogam sobre o que não puderam
ser. Suas histórias hoje causam dramas esquisitos. Eles não se conheceram
nunca? O que teria acontecido? Orgulho? Vingança? Esperança? Solidão? Os velhos
choram uma vida de esguelha. Do meu banco, eu via um rito de passagem para o
mundo real. Discretamente, levantei e me aproximei. Ao invés de triste, eu
estava empolgada com a possibilidade de saber. É infantil, bobo, cruel, mas por
que não? Escuto uma última frase: ‘... volte a pensar em nossos filhos...’ Era
uma decisão? Era um lamento? Era um pedido? Dois idosos sofrendo os
desagradáveis efeitos de uma vida sem ternura. Dois idosos repensando seus
pontos de contato. Dois idosos pensando em (re)proteger suas desejos e
pensamentos com novos recursos ou disfarces. Todas as pessoas utilizam seus
imaginários para suspender suas crescentes frustrações ou depressões. Seus sonhos
ganham existência como defesa. Tal e qual uma bengala, os dois idosos são
personagens em vôo alto, muito alto, de um mundo que se esqueceu do ritmo das
idades e suas formas de envolvimento. Sinto uma tristeza absurda. Do nada, um
sorriso compreensivo do homem ‘acarinha’ o meu coração. Seus braços entornam o
corpo da mulher como se tocasse algo luxuoso demais. Levanto, saio e penso,
‘ninguém pode satisfazer ninguém plenamente’. Oh imaginação!
Claudia Nunes 2010
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