quarta-feira, 17 de junho de 2015

Morreu JOSÉ SARAMAGO: nasce a cegueira branca

Em momentos específicos, penso na morte. Hoje penso na morte. Morreu José Saramago! No caso de nossa família, quando alguém morre, outros bebês nascem. Não é substituição, apenas numericamente não há diminuição. Num conjunto de 20 pessoas, um morto. Total: 23 pessoas. Como assim? Não há faltas numéricas, já estamos multiplicados, já estamos dobrados ou triplicados, já vivenciamos a descendência. Ou seja, numericamente nos mantemos em mais lugares, já estamos em mais lugares. Porém emocionalmente precisamos nos repensar. Mas morreu José Saramago! Emocionalmente, nem o tempo SARA isso. Há uma cultura imaginativa com o qual não mais lidaremos. Há uma narrativa ficcional que não mais nos alertará sobre o mundo e suas perversidades. Há uma MAGIA visionária que não mais nos manterá longe de um forte glaucoma. Depois de Dom Sebastião, Luis de Camões e Fernando Pessoa, Portugal perde outro braço importante de vida. Depois de dominar os mares em parceria com a Espanha, Portugal precisa, de novo, rever o grau dos seus óculos territoriais e ficcionais. Estaria desaparecendo? Portugal e o mundo ficam menos sábios, lúcidos e sem vínculos. Os escritores respondem por boa parte de nossa visão de tudo. Suas narrativas criam revisitações imaginárias sobre a realidade que impede a cegueira das vaidades ou das tradições por um longo tempo. Suas palavras traduzem nossos contrapontos, contragostos ou virulência em relação ao outro como uma pancada no queixo. Nenhuma homenagem será suficiente a este escritor que passou a vida nos homenageando com sua criticidade ferrenha e sua verdade obstinada. Nossos olhos ficaram ainda mais embaçados. No meio da ‘diferença entre estar aqui e já não mais estar’, estamos nós, os pedintes, os necessitados, do susto de outra perspectiva sobre nós mesmos e o mundo em que vivemos. Perdemos a imaginação lógica, a imaginação que raciona inesperadamente sobre os comuns e suas tentativas de sabedoria. Para que lugar Saramago foi? Para o campo das idéias surpreendentes, ainda que rascantes. Saramago está do outro lado da moeda em paz e livre de um mundo cego e cheio de empáfia. Morreu José Saramago, depois de uma luta literária ferrenha, depois de deixar marcas para sempre, depois da vida simplesmente. Morreu José Saramago, mas não desapareceu: abriu uma cômoda confortável no céu, se esticou e está debochando dos cínicos religiosos que aqui ficaram. Estamos à mercê dos ‘maus costumes’, das ‘alegorias’ interesseiras, das promessas de céu eterno. Estamos à mercê da falta de criatividade, criticidade e argumentação. A literatura perdeu mais um ponto de diálogo com o estranhamento, com a controvérsia inteligente, com a indignação objetiva quanto aos desmandos políticos, sociais e religiosos. Ele, como narrador único (nunca se disfarçou em outros), determinou um fluxo contínuo (e voraz) de acompanhamento e de pensamento sobre as nossas maiores injustiças. Morreu Saramago, nosso zelador (diz Chico Buarque), nosso curioso, nosso formador, nosso literato da língua, nosso humanista, nosso homem mais questionador e mais polêmico quanto aos ‘caminhos da sociedade capitalista e o papel da existência humana condenada à morte’. Dezoito de junho de 2010 apresenta-se, em nós, mais uma deficiência: a cegueira. Socorro, a infecção branca começou!!!!!!!!!!!

Claudia Nunes 2010


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