Em momentos
específicos, penso na morte. Hoje penso na morte. Morreu José Saramago! No caso
de nossa família, quando alguém morre, outros bebês nascem. Não é substituição,
apenas numericamente não há diminuição. Num conjunto de 20 pessoas, um morto.
Total: 23 pessoas. Como assim? Não há faltas numéricas, já estamos
multiplicados, já estamos dobrados ou triplicados, já vivenciamos a
descendência. Ou seja, numericamente nos mantemos em mais lugares, já estamos
em mais lugares. Porém emocionalmente precisamos nos repensar. Mas morreu José
Saramago! Emocionalmente, nem o tempo SARA isso. Há uma cultura imaginativa com
o qual não mais lidaremos. Há uma narrativa ficcional que não mais nos alertará
sobre o mundo e suas perversidades. Há uma MAGIA visionária que não mais nos
manterá longe de um forte glaucoma. Depois de Dom Sebastião, Luis de Camões e
Fernando Pessoa, Portugal perde outro braço importante de vida. Depois de
dominar os mares em parceria com a Espanha, Portugal precisa, de novo, rever o
grau dos seus óculos territoriais e ficcionais. Estaria desaparecendo? Portugal
e o mundo ficam menos sábios, lúcidos e sem vínculos. Os escritores respondem
por boa parte de nossa visão de tudo. Suas narrativas criam revisitações
imaginárias sobre a realidade que impede a cegueira das vaidades ou das
tradições por um longo tempo. Suas palavras traduzem nossos contrapontos,
contragostos ou virulência em relação ao outro como uma pancada no queixo.
Nenhuma homenagem será suficiente a este escritor que passou a vida nos
homenageando com sua criticidade ferrenha e sua verdade obstinada. Nossos olhos
ficaram ainda mais embaçados. No meio da ‘diferença entre estar aqui e já não
mais estar’, estamos nós, os pedintes, os necessitados, do susto de outra
perspectiva sobre nós mesmos e o mundo em que vivemos. Perdemos a imaginação
lógica, a imaginação que raciona inesperadamente sobre os comuns e suas
tentativas de sabedoria. Para que lugar Saramago foi? Para o campo das idéias
surpreendentes, ainda que rascantes. Saramago está do outro lado da moeda em
paz e livre de um mundo cego e cheio de empáfia. Morreu José Saramago, depois
de uma luta literária ferrenha, depois de deixar marcas para sempre, depois da
vida simplesmente. Morreu José Saramago, mas não desapareceu: abriu uma cômoda
confortável no céu, se esticou e está debochando dos cínicos religiosos que
aqui ficaram. Estamos à mercê dos ‘maus costumes’, das ‘alegorias’
interesseiras, das promessas de céu eterno. Estamos à mercê da falta de
criatividade, criticidade e argumentação. A literatura perdeu mais um ponto de
diálogo com o estranhamento, com a controvérsia inteligente, com a indignação
objetiva quanto aos desmandos políticos, sociais e religiosos. Ele, como
narrador único (nunca se disfarçou em outros), determinou um fluxo contínuo (e
voraz) de acompanhamento e de pensamento sobre as nossas maiores injustiças.
Morreu Saramago, nosso zelador (diz Chico Buarque), nosso curioso, nosso
formador, nosso literato da língua, nosso humanista, nosso homem mais
questionador e mais polêmico quanto aos ‘caminhos da sociedade capitalista e o
papel da existência humana condenada à morte’. Dezoito de junho de 2010
apresenta-se, em nós, mais uma deficiência: a cegueira. Socorro, a infecção
branca começou!!!!!!!!!!!
Claudia Nunes
2010
Nenhum comentário:
Postar um comentário