Pinel
afirma: “[...] Estou convencido de que pessoas
não são incuráveis se puderem ter acesso ao ar e à liberdade.” (1763; apud
LEDOUX, 2001, p. 206)
Quatro eventos
sugeriram esta escrita: a leitura do livro ‘Quem somos nós’, de William Arntz e
outros; a leitura do artigo ‘A ciência de ser você’ de vários autores,
publicado na Revista SuperInteressante (out 2009); um scrap de uma amiga afirmando ter sido tomada pelo seu ‘lado sombra’;
e, finalmente um papo com outra amiga se dizendo ‘demente’ diante de uma
situação conflituosa. Cada evento, dentro da sua especificidade, revelou a
idéia de que a personalidade humana, quando afetada pelo
insólito/absurdo/inesperado, tem reações surpreendentes, às vezes muito
condenáveis, porque se apresenta fora dos padrões pré-estabelecidos pela
sociedade. A idéia de controle é uma idéia completamente metafórica e só surge
como uma arma de defesa pessoal.
Todos têm
segredos, todos têm desejos impublicáveis e, principalmente, todos convivem com
outros lados de suas personalidades nem sempre refratárias, equilibradas,
compreensivas ou afáveis. O ser humano vê-se então como um composto de sentidos
puros porque seus ‘acertos’, seus desbastes - as regras sociais -, vêm de fora
e podem atingir determinados pontos do cérebro sem aviso prévio. Sendo assim,
analisar estes sentidos como bons ou maus, é analisar o ser humano, ou com uma
adjetivação influenciada pelo contexto ético em que ele nasce e interage; ou como
dependente dos tipos de eventos com que este ser humano lida em seu crescimento
biopsicológico. O que é importante afirmar é que, para além das certezas de ser
isso ou aquilo, o ser humano é potência reativa (ou impulsiva?) cujos
mecanismos cerebrais, relacionados à emoção, têm ações e complexidade que ainda
merecem anos de estudos e esclarecimentos.
Para a
neurociência, o ser humano mantém um cérebro primitivo que, quando surpreendido
por um evento externo, prontamente reage e esta reação relaciona-se ao chamado instinto de sobrevivência. É função sine qua non do código genético humano
defende-se e sobreviver. Antes de se perceber o ser humano como inteligente e
criativo, deve-se observá-lo como um animal. Logo, sem tempo para raciocinar /
ponderar e, por conseguinte, assimilar racionalmente o acontecimento
inesperado, o cérebro humano, por defesa, produz ondas elétricas que levam o
corpo humano a ações impulsivas de todo tipo e sem recortes, liberando a
pressão da situação absurda. Através da fala ou em bruscos movimentos
corporais, liberar é uma das senhas cerebrais de sobrevivência.
Para Jung, em
sua Psicologia Analítica, consciente e inconsciente são dois aspectos de um
único sistema. Ego e self compõem a
psique total humana. Porém o enredamento entre introversão e extroversão
apresenta-se dentro de uma alternância rítmica que ajuda a extravasar os
melhores e os piores lados da personalidade com pouco prejuízo às diferentes
formas de inter-relações humanas, mesmo defrontando-se com o absurdo de algumas
experiências. Ou seja, o ser humano, de novo, tem dois lados integrados que
agem e reagem dependendo dos tipos de experiência com os quais lida.
Estas e outras
formas de leitura analítica da personalidade, de um jeito mais objetivo ou em
suas entrelinhas, apresentam o ser humano com, pelo menos, dois lados: o lado
luz e o lado sombra; o lado sapiens e
o lado demens. E o que resta aos
‘pobres mortais’ humanos é criar habilidades suficientes para manter ambos os
lados em espaços controlados. Possível? Não! Apenas uma atitude ‘de bom tom’
diante da necessidade de se integrar e da ética de conviver. Neste processo
digladiam-se fortemente também, a ansiedade e o medo. Como escreve Ledoux
(2001, p. 209), “[...] a ansiedade provém do íntimo; e o medo, do mundo externo”.
E ambos estão contidos no que se chama ‘ser humano’.
Não é difícil
observar que o ser humano em si mesmo não se vê e quando o faz está diante de
um espelho imaginário: o Outro. Olhar-se é, então aceitar-se como uma
especulação sobre si + as especulações dos outros. O ser humano configura-se
roteiro em constante edição e uma conexão em rede cuja sequência de
colaborações potencializa a personalidade ‘luz’ ou ‘sombra’, cuja perspectiva é
manter atualizados comportamentos e emoções. De que maneira? Pela convivência.
A convivência traz o aprendizado do ‘certo’ e do ‘errado’, dicotomia que mais
reprime do que liberta. Desta feita, no decorrer do tempo, características da
personalidade e certos comportamentos se aprofundam através de caules
experienciais e vivenciais de todos com todos pelo corpo, dentro da mente e nas
relações afetivas. Por isso, vez por outra, se afirma: o ser humano ‘pode
tudo’! Perigoso...
Ao partir para
conhecer o desconhecido ou diante de uma decisão importante, as têmporas
humanas latejam, o cérebro acelera sua plasticidade e o ser humano se realiza
por inteiro, mesmo no lado ‘sombra’, explicitando corporal e verbalmente o que
é, ou o que pensa é. Pelo prazer ou pela dor, o investimento é no respeito à
própria ‘pessoalidade’ sempre. Cada embate enfrentado reflete a luta consciente
/ inconsciente, no espaço da memória, das informações possíveis e impossíveis à
exposição social. É assustador, doloroso, mas envolvente e até atraente porque,
em essência, trabalha-se a criatividade do disfarce. O ser humano é disfarce
puro. O ser humano é um grande blefe no contexto da vivência real.
Muitos teóricos
postulam a existência de traços imutáveis da personalidade. Será? Como imagem
representativa de uma genética específica e das interações sociais nas quais se
estabelecem, os traços humanos podem ser aprofundados, suavizados, ou mesmo
reconstruídos por mil e uma necessidades e dependendo do momento. Diante disso,
além da influência da convivência, está o
poder da escolha. Como produto não acabado e frágil, o ser humano pode
escolher em que relevância estão / estarão sua luz e sua sombra, de forma a
estabelecer seu espaço de atuação ou de acordo com seus interesses.
É uma opção
manter o lado sombra exposto. É uma opção manter-se em indignação, em tensão ou
dentro de um processo de aborrecimentos contínuos. Não se pode descartar que
certos contextos socioeconômicos não imprimem tranqüilidade, calma ou mesmo
alegria à imagem projetada no dia a dia, mas a opção pela obstrução diária do
‘lado luz’ requer tanto trabalho quanto a sua inversão. Diante das “[...]
circunstâncias de vida – a ausência de cuidados e nutrição na tenra infância,
bem como de estimulação social, e uma existência traumática e tensa num meio
ambiente hostil” (LEDOUX, 2001, p. 207) – estabelece-se um processo de
emagrecimento psíquico, cuja tônica exige força
de vontade. Para não enlouquecer ou assumir uma neurose, o ser humano
precisa de estratégias de superação constantes, se assim o desejar. O desejo de
superação é o melhor lado ‘luz’ humano!
No processo de individuação de Jung
cria-se um procedimento de conexão interna de forma a sobrepor os fenômenos
fantasmagóricos da perversidade, maldade, raiva e até loucura, com fenômenos
populares de perseverança, superação, ética e honestidade, embora as maiores
formas de crescimento pessoal sejam o aparecimento, vivência e superação destes
elementos em certas experiências. Ou seja, para crescer e amadurecer, o ser
humano precisa expor, explorar e superar seu demens interior. É o alívio necessário. Não há como viver meio
opaco ou meio translúcido (sem a permissão da luz ou sem poder identificá-la).
O arquétipo do ego sombrio (das imoralidades e das violências) requer formas de
repressão em que possam se projetar comportamentos e características mais
funcionais em sociedade. E aí está justamente a ‘ciência de ser humano’: um ser
em processo de equilíbrio de si no mundo constante.
Ainda assim
sabe-se que há situações (e mesmo pessoas) que merecem ficar frente a frente
com as perdas de sentidos humanos. E esta exposição faz muito bem e cria uma
aura de respeito importante. Carregar o corpo de adrenalina dá plasticidade
tanto ao sistema límbico, quanto às relações pessoais. Limpa a pele, alivia o
coração e despressuriza a cabeça. Diante de uma
“[...]
situação de tensão, a amígdala detecta o perigo, envia mensagens ao hipotálamo,
que por sua vez envia mensagens a glândula hipófise. Há liberação do hormônio
ACTH, que flui na corrente sanguínea para a glândula supra-renal, provocando a
liberação do hormônio esteróide, [o que] ajuda o organismo a mobilizar suas
fontes de energia para enfrentar a situação (ou pessoa) de estresse” (LEDOUX,
2001, p. 180).
Mas são os
momentos ‘demência’ crus, momentos em que o acometimento do ‘sem controle’ se
instaura sem tempo para pensar, que leva o ser humano a se descobrir e a se
entender em quase todas as suas periculosidades. Nestes momentos, os seres
humanos reconhecem suas infinitas capacidades cujo olhar mais inocente não tem
mais lugar. Ao vibrar junto com o fato ‘absurdo’ e reagir ‘no laço’, aflora-se,
no ser humano, o que a paciência, a educação e os valores familiares tanto
reprimem com a desculpa de uma proteção contra injúrias, desgostos ou eternos
arrependimentos: o lado ‘sombra’, o lado animales.
Daí a incerteza
do momento seguinte, daí o medo, já que, mesmo com as desculpas eternamente
esfarrapadas porque a situação e o gesto ‘sombra’ já aconteceram, não há
retorno. Quando o ser humano é ‘encontrado’ pela surpresa da exposição de parte
do seu inconsciente mais primitivo, o que vai importar será como proceder para
tentar conseguir reencontrar novos enquadramentos, harmonias, certezas e
estabilidades, no diálogo com a vida e/ou com o outro, com perdão ou sem
perdão, já que, segundo Ledoux (2001, p. 210), “se o estresse perdurar por um
longo tempo, o hipocampo começará a apresentar falhas em sua capacidade de
controlar a liberação dos hormônios do estresse e de realizar suas funções de
rotina [...]”. Este é um grande terreno onde se presentifica PARA SEMPRE o
‘lado sombra’ transfigurado em loucuras, neuroses, psicopatologias ou dentre as
diferentes dependências.
Diante de um
‘lado sombra’ completamente aberto, o ser humano “[...[ deixa de aprender e de
lembrar como cumprir tarefas comportamentais que dependam do hipocampo”
(LEDOUX, 2001, p. 220), chegando aos famosos ‘lapsos’ de memória ou a uma forte
depressão. Sua rede de emoções pode desordenar-se e não haver recuperação de
ações mentais conscientes, como, por exemplo, o raciocínio. Mordido pelo
‘espírito de porco’ de um outro alguém ou pela insanidade de uma surpresa da
vida, o ser humano admite encenar a representação da sua inconsciência de forma
feroz: seu ‘lado sombra’.
Apesar disso,
nem tudo está perdido ao ser humano, porque ‘lados sombra’, também podem ajudar,
podem criar aprimoramentos interessantes. À perda da consciência de si e do
todo diante de um acidente, uma ofensa, uma discussão no trânsito, uma ‘falta
de educação’, um desleixo, uma perda pessoal ou profissional, ou mesmo uma
ordem ‘fora do lugar’, ‘fora do esperado’, ‘fora do cotidiano’, há outros
papéis ao ‘lado sombra’ que podem transformar o próprio ser humano; há outros
aproveitamentos possíveis a ele que podem se tornar fonte de energia e evolução
humana interior, por exemplo: diante de um ‘lado sombra’, podem surgir a
espontaneidade, a criatividade, a indulgência, o ‘espírito esportivo’ etc. À
sensação da emoção profunda, de encontro com o profundo que há em todos nós,
projeta-se um processo de afloramento interessante de mais consciência sobre as
reais capacidades de ser/estar/agir dos próprios seres humanos.
Porém não há
como negar, isso ‘só depois’, tal aproveitamento do lado sombra só surge no
momento seguinte, quando a adrenalina diminui, os hormônios se reorganizam, as
amígdalas e hipocampo retomam às suas atividades rotineiras, e o sujeito
consegue pensar e refletir sobre o insólito anterior e sua reação. Só ai se
inicia o processo de recomposição narcísica e a aprendizagem. Da distorção
momentânea de si à reorganização em grupo dentro de um conjunto de imagens
mentais renovadas, está encenada a transformação constante do corpo
bio/psico/sociológico.
E assim caminham
a personalidade e o comportamento do animal homem.
Referências
ARNTZ, William, CHASSE, Betsy e VICENTE,
Mark. Quem somos nós? A descoberta
das infinitas possibilidades de alterar a realidade diária. Rio de Janeiro:
Prestígio Editoral, 2007.
FADIGMAN, James e FRAGER, Robert. Carl
Jung e a Psicologia Analítica. In. Teorias
da personalidade. São Paulo: HABRA, 1986, p. 41-70.
LEDOUX, Joseph. Onde os desregramentos
estão. In. O Cérebro Emocional: os
misteriosos alicerces da vida emocional. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001, p.
206-243.
REZENDE, Rodrigo et al. A ciência de ser VOCÊ. Revista
Superinteressante (out-2009). São Paulo: Ed. Abril, 2009, p. 68-89.
Claudia Nunes
2009
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