quinta-feira, 18 de junho de 2015

LADO 'SOMBRA': estilo humano


Pinel afirma: “[...] Estou convencido de que pessoas não são incuráveis se puderem ter acesso ao ar e à liberdade.” (1763; apud LEDOUX, 2001, p. 206)

Quatro eventos sugeriram esta escrita: a leitura do livro ‘Quem somos nós’, de William Arntz e outros; a leitura do artigo ‘A ciência de ser você’ de vários autores, publicado na Revista SuperInteressante (out 2009); um scrap de uma amiga afirmando ter sido tomada pelo seu ‘lado sombra’; e, finalmente um papo com outra amiga se dizendo ‘demente’ diante de uma situação conflituosa. Cada evento, dentro da sua especificidade, revelou a idéia de que a personalidade humana, quando afetada pelo insólito/absurdo/inesperado, tem reações surpreendentes, às vezes muito condenáveis, porque se apresenta fora dos padrões pré-estabelecidos pela sociedade. A idéia de controle é uma idéia completamente metafórica e só surge como uma arma de defesa pessoal.
Todos têm segredos, todos têm desejos impublicáveis e, principalmente, todos convivem com outros lados de suas personalidades nem sempre refratárias, equilibradas, compreensivas ou afáveis. O ser humano vê-se então como um composto de sentidos puros porque seus ‘acertos’, seus desbastes - as regras sociais -, vêm de fora e podem atingir determinados pontos do cérebro sem aviso prévio. Sendo assim, analisar estes sentidos como bons ou maus, é analisar o ser humano, ou com uma adjetivação influenciada pelo contexto ético em que ele nasce e interage; ou como dependente dos tipos de eventos com que este ser humano lida em seu crescimento biopsicológico. O que é importante afirmar é que, para além das certezas de ser isso ou aquilo, o ser humano é potência reativa (ou impulsiva?) cujos mecanismos cerebrais, relacionados à emoção, têm ações e complexidade que ainda merecem anos de estudos e esclarecimentos.
Para a neurociência, o ser humano mantém um cérebro primitivo que, quando surpreendido por um evento externo, prontamente reage e esta reação relaciona-se ao chamado instinto de sobrevivência. É função sine qua non do código genético humano defende-se e sobreviver. Antes de se perceber o ser humano como inteligente e criativo, deve-se observá-lo como um animal. Logo, sem tempo para raciocinar / ponderar e, por conseguinte, assimilar racionalmente o acontecimento inesperado, o cérebro humano, por defesa, produz ondas elétricas que levam o corpo humano a ações impulsivas de todo tipo e sem recortes, liberando a pressão da situação absurda. Através da fala ou em bruscos movimentos corporais, liberar é uma das senhas cerebrais de sobrevivência.
Para Jung, em sua Psicologia Analítica, consciente e inconsciente são dois aspectos de um único sistema. Ego e self compõem a psique total humana. Porém o enredamento entre introversão e extroversão apresenta-se dentro de uma alternância rítmica que ajuda a extravasar os melhores e os piores lados da personalidade com pouco prejuízo às diferentes formas de inter-relações humanas, mesmo defrontando-se com o absurdo de algumas experiências. Ou seja, o ser humano, de novo, tem dois lados integrados que agem e reagem dependendo dos tipos de experiência com os quais lida.
Estas e outras formas de leitura analítica da personalidade, de um jeito mais objetivo ou em suas entrelinhas, apresentam o ser humano com, pelo menos, dois lados: o lado luz e o lado sombra; o lado sapiens e o lado demens. E o que resta aos ‘pobres mortais’ humanos é criar habilidades suficientes para manter ambos os lados em espaços controlados. Possível? Não! Apenas uma atitude ‘de bom tom’ diante da necessidade de se integrar e da ética de conviver. Neste processo digladiam-se fortemente também, a ansiedade e o medo. Como escreve Ledoux (2001, p. 209), “[...] a ansiedade provém do íntimo; e o medo, do mundo externo”. E ambos estão contidos no que se chama ‘ser humano’.
Não é difícil observar que o ser humano em si mesmo não se vê e quando o faz está diante de um espelho imaginário: o Outro. Olhar-se é, então aceitar-se como uma especulação sobre si + as especulações dos outros. O ser humano configura-se roteiro em constante edição e uma conexão em rede cuja sequência de colaborações potencializa a personalidade ‘luz’ ou ‘sombra’, cuja perspectiva é manter atualizados comportamentos e emoções. De que maneira? Pela convivência. A convivência traz o aprendizado do ‘certo’ e do ‘errado’, dicotomia que mais reprime do que liberta. Desta feita, no decorrer do tempo, características da personalidade e certos comportamentos se aprofundam através de caules experienciais e vivenciais de todos com todos pelo corpo, dentro da mente e nas relações afetivas. Por isso, vez por outra, se afirma: o ser humano ‘pode tudo’! Perigoso...
Ao partir para conhecer o desconhecido ou diante de uma decisão importante, as têmporas humanas latejam, o cérebro acelera sua plasticidade e o ser humano se realiza por inteiro, mesmo no lado ‘sombra’, explicitando corporal e verbalmente o que é, ou o que pensa é. Pelo prazer ou pela dor, o investimento é no respeito à própria ‘pessoalidade’ sempre. Cada embate enfrentado reflete a luta consciente / inconsciente, no espaço da memória, das informações possíveis e impossíveis à exposição social. É assustador, doloroso, mas envolvente e até atraente porque, em essência, trabalha-se a criatividade do disfarce. O ser humano é disfarce puro. O ser humano é um grande blefe no contexto da vivência real.
Muitos teóricos postulam a existência de traços imutáveis da personalidade. Será? Como imagem representativa de uma genética específica e das interações sociais nas quais se estabelecem, os traços humanos podem ser aprofundados, suavizados, ou mesmo reconstruídos por mil e uma necessidades e dependendo do momento. Diante disso, além da influência da convivência, está o poder da escolha. Como produto não acabado e frágil, o ser humano pode escolher em que relevância estão / estarão sua luz e sua sombra, de forma a estabelecer seu espaço de atuação ou de acordo com seus interesses.
É uma opção manter o lado sombra exposto. É uma opção manter-se em indignação, em tensão ou dentro de um processo de aborrecimentos contínuos. Não se pode descartar que certos contextos socioeconômicos não imprimem tranqüilidade, calma ou mesmo alegria à imagem projetada no dia a dia, mas a opção pela obstrução diária do ‘lado luz’ requer tanto trabalho quanto a sua inversão. Diante das “[...] circunstâncias de vida – a ausência de cuidados e nutrição na tenra infância, bem como de estimulação social, e uma existência traumática e tensa num meio ambiente hostil” (LEDOUX, 2001, p. 207) – estabelece-se um processo de emagrecimento psíquico, cuja tônica exige força de vontade. Para não enlouquecer ou assumir uma neurose, o ser humano precisa de estratégias de superação constantes, se assim o desejar. O desejo de superação é o melhor lado ‘luz’ humano!
No processo de individuação de Jung cria-se um procedimento de conexão interna de forma a sobrepor os fenômenos fantasmagóricos da perversidade, maldade, raiva e até loucura, com fenômenos populares de perseverança, superação, ética e honestidade, embora as maiores formas de crescimento pessoal sejam o aparecimento, vivência e superação destes elementos em certas experiências. Ou seja, para crescer e amadurecer, o ser humano precisa expor, explorar e superar seu demens interior. É o alívio necessário. Não há como viver meio opaco ou meio translúcido (sem a permissão da luz ou sem poder identificá-la). O arquétipo do ego sombrio (das imoralidades e das violências) requer formas de repressão em que possam se projetar comportamentos e características mais funcionais em sociedade. E aí está justamente a ‘ciência de ser humano’: um ser em processo de equilíbrio de si no mundo constante.
Ainda assim sabe-se que há situações (e mesmo pessoas) que merecem ficar frente a frente com as perdas de sentidos humanos. E esta exposição faz muito bem e cria uma aura de respeito importante. Carregar o corpo de adrenalina dá plasticidade tanto ao sistema límbico, quanto às relações pessoais. Limpa a pele, alivia o coração e despressuriza a cabeça. Diante de uma
“[...] situação de tensão, a amígdala detecta o perigo, envia mensagens ao hipotálamo, que por sua vez envia mensagens a glândula hipófise. Há liberação do hormônio ACTH, que flui na corrente sanguínea para a glândula supra-renal, provocando a liberação do hormônio esteróide, [o que] ajuda o organismo a mobilizar suas fontes de energia para enfrentar a situação (ou pessoa) de estresse” (LEDOUX, 2001, p. 180).

Mas são os momentos ‘demência’ crus, momentos em que o acometimento do ‘sem controle’ se instaura sem tempo para pensar, que leva o ser humano a se descobrir e a se entender em quase todas as suas periculosidades. Nestes momentos, os seres humanos reconhecem suas infinitas capacidades cujo olhar mais inocente não tem mais lugar. Ao vibrar junto com o fato ‘absurdo’ e reagir ‘no laço’, aflora-se, no ser humano, o que a paciência, a educação e os valores familiares tanto reprimem com a desculpa de uma proteção contra injúrias, desgostos ou eternos arrependimentos: o lado ‘sombra’, o lado animales.
Daí a incerteza do momento seguinte, daí o medo, já que, mesmo com as desculpas eternamente esfarrapadas porque a situação e o gesto ‘sombra’ já aconteceram, não há retorno. Quando o ser humano é ‘encontrado’ pela surpresa da exposição de parte do seu inconsciente mais primitivo, o que vai importar será como proceder para tentar conseguir reencontrar novos enquadramentos, harmonias, certezas e estabilidades, no diálogo com a vida e/ou com o outro, com perdão ou sem perdão, já que, segundo Ledoux (2001, p. 210), “se o estresse perdurar por um longo tempo, o hipocampo começará a apresentar falhas em sua capacidade de controlar a liberação dos hormônios do estresse e de realizar suas funções de rotina [...]”. Este é um grande terreno onde se presentifica PARA SEMPRE o ‘lado sombra’ transfigurado em loucuras, neuroses, psicopatologias ou dentre as diferentes dependências.
Diante de um ‘lado sombra’ completamente aberto, o ser humano “[...[ deixa de aprender e de lembrar como cumprir tarefas comportamentais que dependam do hipocampo” (LEDOUX, 2001, p. 220), chegando aos famosos ‘lapsos’ de memória ou a uma forte depressão. Sua rede de emoções pode desordenar-se e não haver recuperação de ações mentais conscientes, como, por exemplo, o raciocínio. Mordido pelo ‘espírito de porco’ de um outro alguém ou pela insanidade de uma surpresa da vida, o ser humano admite encenar a representação da sua inconsciência de forma feroz: seu ‘lado sombra’.
Apesar disso, nem tudo está perdido ao ser humano, porque ‘lados sombra’, também podem ajudar, podem criar aprimoramentos interessantes. À perda da consciência de si e do todo diante de um acidente, uma ofensa, uma discussão no trânsito, uma ‘falta de educação’, um desleixo, uma perda pessoal ou profissional, ou mesmo uma ordem ‘fora do lugar’, ‘fora do esperado’, ‘fora do cotidiano’, há outros papéis ao ‘lado sombra’ que podem transformar o próprio ser humano; há outros aproveitamentos possíveis a ele que podem se tornar fonte de energia e evolução humana interior, por exemplo: diante de um ‘lado sombra’, podem surgir a espontaneidade, a criatividade, a indulgência, o ‘espírito esportivo’ etc. À sensação da emoção profunda, de encontro com o profundo que há em todos nós, projeta-se um processo de afloramento interessante de mais consciência sobre as reais capacidades de ser/estar/agir dos próprios seres humanos.
Porém não há como negar, isso ‘só depois’, tal aproveitamento do lado sombra só surge no momento seguinte, quando a adrenalina diminui, os hormônios se reorganizam, as amígdalas e hipocampo retomam às suas atividades rotineiras, e o sujeito consegue pensar e refletir sobre o insólito anterior e sua reação. Só ai se inicia o processo de recomposição narcísica e a aprendizagem. Da distorção momentânea de si à reorganização em grupo dentro de um conjunto de imagens mentais renovadas, está encenada a transformação constante do corpo bio/psico/sociológico.
E assim caminham a personalidade e o comportamento do animal homem.

Referências
ARNTZ, William, CHASSE, Betsy e VICENTE, Mark. Quem somos nós? A descoberta das infinitas possibilidades de alterar a realidade diária. Rio de Janeiro: Prestígio Editoral, 2007.
FADIGMAN, James e FRAGER, Robert. Carl Jung e a Psicologia Analítica. In. Teorias da personalidade. São Paulo: HABRA, 1986, p. 41-70.
LEDOUX, Joseph. Onde os desregramentos estão. In. O Cérebro Emocional: os misteriosos alicerces da vida emocional. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001, p. 206-243.
REZENDE, Rodrigo et al. A ciência de ser VOCÊ. Revista Superinteressante (out-2009). São Paulo: Ed. Abril, 2009, p. 68-89.

Claudia Nunes 2009


Nenhum comentário:

Postar um comentário