O cotidiano é um acervo de idéias surpreendentes. Cheguei
a essa conclusão, olhando as pessoas na praça de alimentação de um shopping no
subúrbio do Rio. Sentada, olhei ao meu redor e observei múltiplas situações.
Quase todas envolviam sentimento / emoção. Casais estavam sentados em pontos
estratégicos e todos, em sua maioria, estavam discutindo a relação. Como sei? A
linguagem não-verbal é claríssima! Aí, pensei o seguinte: só se quer discutir
relação quando “deslizes” foram cometidos e estes, criando “um clima”, agenciam
as diferenças de personalidade e de posturas diante de cada realidade. Dando
asas à minha imaginação, pensei em meu círculo de amigos; em seus afetos,
algumas vezes, nada tradicionais; e nos desgastes que esses mesmos afetos
proporcionam internamente a cada um deles.
Quando
temos amigos participamos direta ou indiretamente de suas histórias de vida. E
as histórias mais interessantes são as que envolvem paixões, amores, afetos dos
mais diferentes tipos. Cada início e fim de relação têm momentos de transição
em que acreditam que “nunca mais cometerão o mesmo erro!!”, ou que “da próxima
vez, serão mais inteligentes!!”, ou que “não deixarão ninguém agir assim com
eles de novo!!”. Enfim, investir em novo projeto de vida afetiva é tentar não
cometer, pelo menos, os mesmos erros da relação anterior.
Meus amigos observam que, se tivessem feito isso ou
aquilo, a história do casal, possivelmente seria outra. Fora do redemoinho das
grandes paixões, fazem um levantamento, agora mais crítico e criterioso, de
suas próprias ações e percebem que houve um erro de leitura: um erro de
leitura do outro, das situações, leitura do que realmente queriam, leitura de
si etc. Em função disso, promessas tornaram-se impossíveis de cumprir. Se a
leitura foi errada, as promessas, frutos desses momentos, tornaram-se inócuas,
tornaram-se palavras ao vento, tornaram-se infrutíferas.
Diante disso, minha imaginação foi mais além: o que é
leitura afinal? o que é ler afinal? Por que erramos tanto em certas avaliações
de mundo, de textos, de pessoas, de nós mesmos? Que elementos atravessam nossa
mente nos levando a erros só percebidos tarde demais? Dessas dúvidas, outras
mais profissionais se apresentaram: por que a maioria das pessoas diz que não
gosta de ler? Ou seria essa afirmativa uma certeza vinculada por um poder que
não se quer lido? Ou não gostar de ler se refere apenas a livros, a escrita, a
palavra, e não a sentimentos, já que o que mais se faz é “discutir relação”?
Aí está a razão do corpo desse texto: a leitura
Em todos os tempos demarcados ou não pelos livros de
história, o ser humano se apresenta como produtor de signos. Os signos
incorporam as diversas peculiaridades de uma comunidade e tem a sua
concretização na comunicação. Signos são maneiras de comunicação, são formas de
reconhecimento de um grupo de pessoas. Não se lê o que não se entende. Não se
vive onde não se reconhece. Reconhecer é perceber o mundo. Perceber é criar
imagens. Imagens são representações das mais variadas formas de ser. Ler seria,
então, a conjunção dessas diversas formas de ser, seria uma estrutura linear
convocada pelos sentidos para ligar indivíduos a objetos, indivíduos a
situações, indivíduos a indivíduos, com extrema criatividade.
Enquanto esses signos circulavam em torno de um só grupo,
cresceram os diversos tipos de linguagem já que, no mundo, existiam muitos
grupos espalhados, cada um com seu estilo. Porém outra necessidade se
apresentou: quem é o outro? E essa pergunta só pôde ser respondida, na
correlação e inter-relação de todos os signos de cada grupo. Isoladamente o ser
humano era um só, no grupo ele passou a ser o todo. Os signos inauguraram uma
relação de força na medida em que, mesmo levando em consideração as diferenças,
houve a necessidade das relações, principalmente, comerciais e, nesse contexto,
os signos passaram a ser identificáveis por todos.
A oralidade determinou as diferenças. A escrita
incorporou a igualdade. O saber do outro passará a fazer parte do meu saber, do
saber humano, também. Na medida em que sei o outro, sou, então serei sempre
mais do que um. Mas para isso há a necessidade da leitura, de ler, de saber
ler. Há que se interpretar os vários sentidos a partir de um mesmo objeto,
situação ou pessoa e, nesse processo, construir uma sociedade, por exemplo. E
essa leitura poderia ocorrer a partir de gestos, cores pintadas no corpo,
danças, tipos de mímica, figuras gravadas na pedra ou nas cavernas, e até em
pergaminhos (chegamos ao papel). Logo se vê que, para uma simples leitura,
sempre houve muitas "mídias", muitas "tecnologias"
possíveis. A possibilidade de erro é imensa! O erro é humano!
De outro lado, observando a história brasileira e
mundial, por que só a mídia "livro" se tornou tão importante em
detrimento de outras formas de obter informação / conhecimento? Se pensarmos em
jogo de poder, estaremos no caminho certo e "desnovelando" as
perversidades a que somos submetidos por esse mesmo poder em nome de uma
crescente formatação do saber. O livro, então, configura-se como um objeto
limítrofe (formatado, organizado, fechado) onde sub-repticiamente são
propaladas mensagens de dominação. As palavras estimulariam a negação de
qualquer forma de rebeldia. O conteúdo ficcional seria manipulado visando uma
crença na estrutura vivida na realidade. O contexto separaria mundos: um mundo
das ações possíveis e um mundo das atitudes reprimidas; um mundo onde se dá
vazão ao imaginário e um mundo medido pelos ditames sociais; dentre outras
subdivisões.
Acreditou-se (acredita-se) que a palavra escrita,
delineada através de regras pré-estabelecidas e concentrada em um único objeto,
aliviaria o ser humano da "perda de tempo" que é a pura observação,
ou seja, que é viver a vida. Nisso, acreditou-se também que, dentre todas as
manifestações artísticas, a literatura fosse a forma literária com mais
capacidade de simplificar as leituras de mundo a que somos submetidos a toda
hora por ser o lugar das análises, das críticas, das avaliações da realidade
como um todo. O que antes foi criado para dar força, hoje desestabiliza a
percepção individual. O que antes foi criado para se entender as diferenças,
hoje elimina o diferente. A concentração de simbolismo, retórica, metáforas,
subjetividades etc., hoje "enche o saco". Por que? Porque o tempo é
outro. Se o signo anterior era produto, mercadoria, lucro, agora se
acrescenta a tudo a velocidade. Outro erro perfeitamente humano...
Idéia: Aprendemos a ler no confronto com nossas próprias
experiências. Aprendemos a ler na prática da vida. Até porque, mesmo na leitura
do texto escrito, exige-se todo um sistema de relações interpessoais, entre
várias áreas do conhecimento, de forma contextualizada, para construir um certo
conteúdo. Enfim, aprendemos a ler, lendo. Sendo. Curiosos, vamos ao mundo para
alimentar nosso imaginário, fazer marcas indeléveis em nossa mente, criar
memória e romper com quaisquer estruturas. Mas onde se instalaria o erro de
leitura? Ou, de onde ele viria? Em/de nós mesmos, nos sentidos que incorporamos
aos objetos / pessoas pela posse ou diante da convivência. Nesse processo nos
esquecemos. Apagamos. Formamos um mecanismo de defesa justificado na imagem de
alegria, de paz, de certeza, de verdade que esse objeto ou pessoa passa a
representar. Queremos a imagem, lemos às imagens que produzimos sobre as
coisas, não as coisas. E nos comprometemos. A velocidade com que nos envolvemos
faz da leitura um erro. Não há diálogo, há expectativa, há espera, há suspense.
Diante disso, podemos responder porque não gostamos de
ler? Sim! Não gostamos de ler porque vivemos um mundo em que o olhar pode ser
capturado por tudo ao mesmo tempo e diante do qual temos que fazer certas
escolhas em detrimento de outras, rapidamente. Fazer escolhas é rejeitar
possibilidades reais, pelo grau de importância, pelo uso dentro de uma
realidade e/ou pelos objetivos de vida preestabelecidos. São escolhas feitas
por uma necessidade instantânea. São escolhas aventureiras. São escolhas
arriscadas. Pensar torna-se um processo fantasioso de conhecer. Não gostamos de
ler porque não temos tempo para ler. Não gostamos de ler, porque privilegiamos
ainda o racional em detrimento do sensível e do emocional. Esquecemos que se lê
com os sentidos, com as emoções e também com o intelecto.
O
verbo ler deve voltar a ser uma ação a partir do qual haja interação entre
"imaginação, criatividade e personalidade", e isso com um olhar
voltado para todas às manifestações artísticas, profissionais, pessoais e,
principalmente, individuais. Com isso, os interesses se multifacetarão e o
saber reflexivo poderá ser construído a partir de toda e qualquer visualização
de mundo, já que as interpretações tornar-se-ão intrínsecas, integrais e
intensas.
Dentro
de uma relação pessoal (ler a relação dentro da relação), por exemplo, o que se
entrega é o que se tem, é o que se pode, é o que se quer. Não sejamos ingênuos
em pensar que haja indução de qualquer parte para fazer isso ou aquilo, sentir
isso ou aquilo, afinal escolhemos quais serão nossos encontros essenciais. Numa
relação apaixonante (nossa linha inicial de pensamento nessa escrita)
isso é ilimitado (acredita-se). Há uma interação tendendo para o
desaparecimento. E é justamente aí que precisamos ter todo o cuidado... A
satisfação da entrega incondicional provocará erros de leitura. Os sentidos
achatarão o intelecto e as imagens representativas do momento serão tomadas
como verdades. Veremos o que ansiarmos. Veremos o desejo, o nosso desejo.
Interagiremos fielmente com nós mesmos. Até o outro sumirá. A leitura será
sobre o desejo de nós mesmos. A leitura será sobre o outro que somos nós.
Atenção: o outro lado do espelho também constrói um EU.
Enfim,
erros de leitura são leituras de um eu-em-desejo, são erros para a
imagem que olha o espelho, são acertos para a imagem do espelho. É uma questão
do lugar de onde se olha. Compartilhamos, convivemos, trocamos, nos
relacionamos, mas somos sempre um e um, o outro, a alteridade, é uma criação do
EU em função de se dinamizar e se movimentar no diferente, no espaço diferente,
no tempo diferente. De quem nos aproximamos? Dos iguais? Nunca! Quem nós
chamamos de amigos ou amantes? Os iguais? Jamais! O outro é aquilo que nos diz
ao contrário. O outro realiza o imaginário do EU. O outro, por fim, sendo
assim, é o mais querido, é o mais amado, é o mais desejado.
Erros
de leitura são possibilidades de se ser a partir da criação do outro. Nós temos
erros de leitura? Não! Estes acontecem em alguns momentos em que somos Outro.
Conclusão? Todos gostamos de ler! Lemos o tempo todo! Eu,
nessa praça de alimentação, estou lendo as pessoas como possibilidades de mim.
Os cincos sentidos são meus referenciais para leitura e se sofisticam no
desenvolvimento cognitivo humano. Eles nos dão a conhecer o que gostamos e o
que não gostamos. Não são impressões vãs. São possibilidades-base para a
construção de condições reais de interferência na dinâmica do mundo, das
pessoas, dos objetos (livro, p.e.) e de nós mesmos. E o erro faz parte, pois
estabelece novos parâmetros, novas diretrizes para os próximos passos em busca
de novas leituras.
Erremos então...
Claudia Nunes 2008
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