quarta-feira, 17 de junho de 2015

ARMÁRIO DELA

Fim do ano, de novo, as limpezas. Desde o fim de setembro, ela vinha notando que todo dia tinha muito lixo para jogar fora. Todo dia saquinhos com restos dos seus momentos eram rasgados, amarrotados, embolados sem timidez. Abrir as gavetas era um inferno! A sensação de cansaço aumentava porque sempre encontrava algo para jogar fora, algo inutilizado pela passagem do tempo. Estranho é que coisas tão importantes um dia e guardadas com tanto carinho, agora não tinha nem contexto. Notificações e propagandas bancárias, pequenos objetos sujos, brinquedinhos bobos, lembrancinhas de festas, revistas, papéis de bala, canetas, roupas largas ou apertadas demais, sapatos sem atualidade, tudo, sob o olhar do tempo presente, perdeu a aura, a essência, a emoção. Calmamente, ela tira tudo do armário e enxerga o ‘sem fundo’. Não tem a barata de Clarice, mas tem fundo. Anos arrumando e atulhando coisas em cada espacinho deste móvel sem perceber seus próprios limites. Havia um fundo ao alcance da mão e com uma comunidade diversificada de insetos ou com o indício de que ali havia muita vida. Com uma vassoura e muito medo, ataca o fundo do armário, de cima a baixo. A vassoura atinge todos os cantos. Outro ano de quinquilharias se aproxima. ‘Por que junto tanta quinquilharia?’ – ela pensa. ‘Por que amo tão incondicionalmente?’ – ela se toca. ‘Por que é difícil perdoar?’ – ela sente. ‘Por que ignora amigos que apresentaram defeitos?’ – ela chora. Paft! Puft! Risk! A vassoura não pára, mas agora sem direção. De repente, ela atinge a porta do quarto. ‘Deus, cadê o armário?’ – ela grita. Cansada, ela chora com tanta dor. Senta na cama e respira. ‘Não quero mais nada disso!’ – ela pensa. Ainda ofegante separa as roupas: ‘essa não quero... essa eu quero’ – ela escolhe. Nem tudo é necessário, mas nem tudo deve ser jogado fora tão displicentemente. Ela não quer olhar o armário. Vazio demais, sem cor, sem movimento, sem amor. Mas as lembranças e as emoções devem sempre ter um lugar. Não precisa ser arrumado, mas um lugar que a defenda, que a conforte, que a console, que a ame como sempre desejou. Então a palavra de ordem é ‘arrumação’. É preciso enfrentar o armário escuro e limpo. Foi uma vontade. Ela se desnudou tão fortemente que, agora ela que outra pessoa: ela de novo. O buraco negro arrepia e a mente lateja de perguntas: por que tantos senões? por que tantas amarguras? por que as pequenas mentiras, segredos e silêncios imprudentes? por que aquele não ou aquele sim, quando na verdade nem um nem outra era verdade? por que comprar/aceitar coisas/ações inadequadas? por que discutir, brigar e fugir quando o que se quer é decidir? No armário, diante dela, estas e outras perguntas penduradas nos cabides como orgulhos e mantidos como troféus. Para que? Recordar? Reconhecer? Confirmar? ‘Oh besteira’ – ela se zanga. Inferno astral do fim do ano. De novo respira fundo, se levanta, não quer mais estes cabides. Não quer mais pendurar ‘o de sempre’. Quer uma alma diferente, iluminada, atraente. Ela fecha os olhos, arrepia os pêlos e cria a ventania das boas idéias. Com a vassoura dos objetivos recém-criados varre os entulhos de si. É duro. É doloroso. Trinca os dentes. Ninguém pode ajudá-la. Sua respiração areja os cantos. É um animal em busca de sobrevivência. Não pode ficar nada mal-resolvido, manipulável ou reprimido. Ao toque dos pensamentos, a forte ventania tem poucos obstáculos. Batem á porta. ‘Por que demora tanto?’ – eles afirmam. A porta do armário bate com força. Ela se assusta, pega as roupas da cama e, rapidamente, enche o armário aleatoriamente. Ofegante, ‘será que consegui?’, ‘será que os grilhões se desmancharam?’, ‘será que as ilusões ficaram para trás?’, ‘será que deixarei de sofrer?’ Vapt! Vupt! Roupas no cabide, sapatos no fundo, meias nas gavetas, perfumes nas prateleiras. Vapt! Vupt! Desordenada, desgovernada, está montada, outra vez, para o próximo ano...

Claudia Nunes 2009


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